domingo, 26 de abril de 2009

O QUE É FICÇÃO? Ivete Walty


Ivete Walty inicia sua reflexão sobre a relação realidade/ficção através de um mote bastante habitual, mas fecundo: o dicionário. No geral, ela entende que, denotativamente, ficção difundiu-se entre os dicionaristas como algo fantasioso, simulativo ou, então, quando se refere à arte ou à ficção científica. De fato, observaremos estes conceitos no Aurélio: “Ato ou efeito de fingir; simulação, fingimento. Coisa imaginária: fantasia, invenção, criação. Literatura de ficção”[1].
A ficção é, geralmente, associada com a ficção científica, ou seja, com a idéia das possíveis conquistas da técnica e da ciência como foi um dia o popular livro “Vinte mil léguas submarinas” de Júlio Verne, mas é através da idéia de ficção ligada a arte, ou seja, como algo que se distingue da realidade que poderemos traçar um viés mais densificado para a compreensão da ficção. Assim o faz Platão em sua análise sobre a arte como um simulacro:

Portanto, a arte de imitar está bem longe da verdade, e se executa tudo, ao que parece, é pelo fato de atingir apenas uma pequena porção da cada coisa, que não passa de uma aparição. Por exemplo, dizemos que o pintor nos pintará um sapateiro, um carpinteiro, e os demais artífices, sem nada conhecer dos respectivos ofícios. Mas nem por isso deixará de ludibriar as crianças e os homens ignorantes, se for bom pintor, desenhando um carpinteiro e mostrando-o de longe com a semelhança, que lhe imprimiu, de um autêntico carpinteiro. (PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2004. p. 296).

A arte ou a literatura é ficção “no sentido de criação de uma supra realidade”[2]. Mas o que seria, então, a realidade? “O real é fruto de um processo de relações do homem com os outros homens e natureza”[3] nesta reflexão Platão também se faz presente com o seu famoso Mito da Caverna:

A libertação das algemas e o voltar-se das sombras para as figurinhas e para a luz e ascensão da caverna para o Sol, uma vez lá chegados, a incapacidade que ainda têm de olhar para os animais e plantas e para luz do Sol, mas, por outro lado, o poder contemplar reflexos divinos na água e sombras, de coisas reais, e não, como anteriormente, sombras de imagens lançadas por uma luz que é, ela mesmo, apenas uma imagem, comparada com o Sol; são esses os efeitos produzidos por todo este estudo das ciências que analisamos; elevam a parte mais nobre da alma à contemplação da visão do mais excelente seres, tal como há pouco a parte mais clarividente do corpo se elevava à contemplação do objeto mais brilhante na região do corpóreo e do visível. (PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2004. p.229).

A realidade não é algo estático, ela varia de acordo com aquilo que vemos ou pensamos que vemos, pois a na maioria das vezes o que vemos não passa de representação da realidade como o mito platônico e a ideologia no sentido marxista. Conhecer a realidade não é tarefa fácil, o próprio Platão com sua brilhante análise do questionamento do real também se deixa enganar, acreditando que a arte é apenas uma imitação da cópia e não analisando as possibilidades que esta tem de revelar as profundezas da realidade e da essência. Seria então interessante, segundo Walty, conceber a existência da ficção como algo “que nos permitiria pôr em causa a realidade tal como nós a percebemos”[4].
A ficção em nossa sociedade não é tão temida como o foi na República de Platão, mas é, extremamente desvalorizada. Estudando a etimologia da palavra ficção Ivete Walty entende que esta seria criação, como no capitalismo o que se valoriza é a produção, esta é que traz o progresso, a atividade criativa, de forma contraditória, é refutada. Não se pode produzir sem criar, mas a lógica é que somente haja produção da maneira ideologicamente determinada e atividade criativa (não controlada pelo princípio ideológico) ameaça a ordem instituída, ao status quo é desestimulada. “Criar é propor novas ordens, novos sistemas de pensamento, novas maneiras de ver o mundo; logo, a criação ameaça a ordem instituída, as bases em que a sociedade se apóia”[5].
Resgatando as idéias de Freud, Walty nos mostra que a sociedade capitalista que valoriza somente a seriedade de produção e despreza o prazer da criação, o homem só consegue resgatar o prazer através da fantasia. Mas o sistema consegue manipular também esta ficção transformando-a na confirmadora do discurso ideológico (conservadora e reduplicadora de valores) como ocorre, por exemplo, com a empregada doméstica que se conforma com sua condição ao fantasiar que um dia poderá se casar com o filho do patrão assim como ocorreu na novela das oito. Usa-se a necessidade do prazer, de fantasia para se impor a repressão, a verdade social.
A ficção, na atual sociedade, tem um papel relevante para os diversos meios de comunicação: fomentar a fantasia como forma de alienação, reduplicando o real, instituindo-lhe e conservando-lhe as máscaras e os disfarces. Assim ocorre também com a ficção científica ao reproduzir o discurso do progresso através da técnica, da robotização e o poderio da ciência.
Suscitando o teórico Marcuse, entenderemos que a arte será o refúgio à possibilidade da atividade criativa. Segundo este teórico “as obras de arte que expressam os temores e esperanças da humanidade situam-se contra o princípio da realidade predominante, constituindo-se em absoluta denúncia”[6]. Na arte a ficção ganha o seu sentido original, ou seja, ligado ao verbo fazer, criar e segundo Marcuse isso permite a reconciliação do indivíduo com o todo, do desejo com a realização, da felicidade coma razão.
Desta forma podemos compreender que a ficção, a arte tanto pode ser um espaço do questionamento, da dúvida, da eterna pergunta, porque espaço da criação, da volta à origem, ao estado de comunhão do homem com a natureza como pode ser também a reduplicação do real a que está submetida; “a imaginação, a criação podem ser controladas pelo sistema e podem ser meio de controle utilizado por este mesmo sistema”[7]. O relevante é observar o considerado real e ficcional e até onde estes podem está certos ou não, deve-se abalar os limites que dividem essa dicotomia. Às vezes se pode notar “quanta ficção esconde a chamada realidade e como, através da ficção, pode-se desvendar o real enquanto processo fruto das relações dos homens entre si e com a natureza”[8], por exemplo, o texto ficcional de Alencar que elogia o índio em O Guarani, retrata, na realidade,a visão do branco sobre o índio e a dura realidade do colonialismo.
“Rejeitando o discurso ficcional, a sociedade garante a outros discursos o estatuto de sacralização, caracterizando-os como objetivos, como sérios, portadores de verdades irrefutáveis. Estes textos – o histórico, o científico, o jornalístico, o religioso – não se querem contestados; é, pois, interessante que se tenha uma categoria específica de textos a que se chama ficcional, como é conveniente à sociedade a existência das prostitutas para que as mulheres sérias sejam respeitadas.”[9]
As relações sócio – econômicas geram estratificações hierárquicas que conferem a um discurso o estatuto de ciência, história ou ficção. O real é recortado, fragmentado, e o homem se divide entre o pragmático e o poético, o trabalho e o lazer, o viver e o dizer, submetendo-se a uma ordem estabelecida que acredita natural e imutável. A ficção seria o onírico, o mítico, o artístico e especificamente o literário; são os chamados discursos de representação. O homem no mito, no sonho e no discurso literário, estaria representando, fingindo. Mas uma reflexão sobre os mitos já nos leva a questionar essa consideração. Segundo Mircea Eliade “De fato, a palavra (mito) é hoje empregada tanto no sentido de ficção ou ilusão como no sentido de tradição sagrada, revelação primordial, modelo exemplar”[10]. Porém a concepção desse filósofo diverge do entendimento contemporâneo, para ele “o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio”[11]. Claramente esse conceito sobrevive em nossa sociedade. O baile de debutante, as calouradas, as festas de batizado são traduções dos ritos de iniciação, ou seja, marcam a passagem de uma etapa da vida para outra. Nesse mito, o homem se representa e ao seu mundo. Além desses ritos (análogos aos mitos) o homem também se representa através de seus discursos e produções da sociedade industrial. O discurso mítico é um discurso de representação, porque tudo é representação, e as personagens míticas, como a noiva, por exemplo, fazem parte do nosso real de forma efetiva.
Outro discurso tido como representação é o onírico, mas o sonho pode formar um texto que também é leitura do real. “O sonho seria a linguagem do inconsciente se fazendo sentir”[12], mas, até aí, os elementos cerceadores do sistema aparecem, pois a ideologia também perpassa o inconsciente. O sonho é um instrumento que temos para perceber a nossa visão e atuação na sociedade, mesmo que aquela possa parecer turva.
A mesma falácia incorre com a idéia do literário, considerada por muitos como discurso do fingimento. Terry Eagleton nos mostra que um dos primeiros elementos para caracterizar a literatura é a ficção: “Muitas têm sido as tentativas de se definir literatura. É possível, por exemplo, defini-la como a escrita ‘imaginativa’, no sentido de ficção. Mas se refletirmos, ainda que brevemente, sobre aquilo que comumente se considera literatura, veremos que tal definição não procede”[13]. Não procede, pois muito do que é considerado como fictício é realidade e muito do que é considerado realidade é ficção. A literatura é, deveras, usada como forma de representação do homem e da sociedade em que vive. O texto, por mais que tenha a intenção, de fato, de ser fictício, ele sempre retrata a visão da sociedade de quem o escreve, daí a sua carga de realidade.
A ficção não é privilégio da arte, do sonho, do mito e do literário, os discursos que têm estatuto de verdade estão extremamente marcados pelo elemento fictício. A história, por exemplo, não retrata fatos, mas a versão dos fatos. A história é relativa, pois sempre está refletindo uma ideologia do momento a ser narrado. O que ocorre, na maioria das vezes, é o discurso da ficção revelando o real que fica camuflado no discurso histórico. O registro histórico é apenas a versão de um fato revelado por alguém, e o mesmo ocorre com o texto jornalístico, considerado tão objetivo e revelador da mais pura realidade. Os jornais, por vezes, fazem recortes dos fatos e utilizando do elemento retórico transmitem uma visão da realidade deturpada, de acordo com a ideologia do sistema.



Ivete Walty através da sua reflexão sobre o saber em nossa sociedade, depreende que esta valoriza o discurso científico e histórico, ou seja, o discurso factual. Já o discurso artístico ocupa um espaço delimitado junto a outros discursos ficcionais. Isso ocorre, pois em nossa sociedade se estabelece um abismo entre o saber e o fazer.
A ideologia nos leva a entender que está reservado a um grupo de pessoas a função do pensar. A situação político-social e econômica seria responsabilidade de uma classe, dos sábios e doutores. Cabe ao cidadão-operário somente trabalhar. Além disso, o saber instituído é o único saber valorizado. Cabe a população assimilar o saber determinado pelas elites: a matemática, a física, a gramática...Filósofos, artistas e poetas são taxados de loucos e preguiçosos. O saber instituído isola os diversos ramos da produção cultural humana de forma a poder controlá-los melhor porque teme o diferente, o inusitado que ameaça a ordem vigente.
O saber é uma forma de poder, quanto mais fragmentado ele for, mais fácil de controlá-lo. A ficção é uma forma de saber como tantas outras, e como tal, uma forma de poder, por isso é preciso controlá-la, vigiá-la para que ela não seja um mote de curiosidade, de indagação. Deve-se considerar a ficção coisa indigna, meio de lazer e distração para que a argumentação não surja através dela. A ficção é, na verdade, discurso tão digno de crédito como qualquer outro, pois ela faz uma leitura do real, por vezes, até melhor do que os chamados discursos verídicos e objetivos.

4 REFERÊNCIAS

EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. 5° ed. São Paulo: Perspectiva, 1998.

FERREIRA,Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2004.

WALTY, Ivete Lara Camargos. O que é ficção? São Paulo: Brasiliense, 2001.




[1] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. p.785
[2] WALTY, Ivete Lara Camargos. O que é ficção? São Paulo: Brasiliense, 2001. p.15
[3] Ibid. p.19
[4] Ibid. p.28
[5] Ibid. p.34
[6] Ibid. p.59
[7] Ibid. p.48
[8] Ibid. p. 50
[9] Ibid. p.52
[10] ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. 5° ed. São Paulo: Perspectiva, 1998. p.8
[11] Ibid p.11
[12] WALTY. op. cit. p. 59
[13] EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1983. p.1

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